Sexta-feira, 18 de Abril de 2015
Imagem ilustrativa
O caso deixou
boquiabertos todos os envolvidos: uma mulher de 74 anos começou a apresentar
uma irritação na pele que não melhorava. Quando finalmente procurou um
hospital, parte de sua perna direita estava coberta de nódulos. Os testes
confirmaram que se tratava de um carcinoma, um tipo de câncer de pele.
Por causa da maneira como os tumores estavam espalhados, a radioterapia não
seria eficiente. E os médicos não poderiam removê-los. Alan Irvine, oncologista
responsável pelo tratamento da paciente no Hospital St. James, em Dublin, na
Irlanda, lembra que a amputação parecia ser a única opção viável, mas por causa
da idade da paciente, seria difícil que ela se adaptasse bem a uma prótese.
“Decidimos simplesmente esperar e pensar em outras possibilidades, mesmo
sabendo que haveria muito sofrimento pela frente”, conta.
Foi aí que o “milagre” começou: apesar de não terem sido tratados, os tumores
diminuíram e murcharam até desaparecerem completamente. Depois de 20 semanas, a
paciente estava curada. “Não tínhamos dúvida alguma de que o diagnóstico estava
correto, mas depois disso nada aparecia nas biópsias ou nos exames de imagem”,
diz o médico. “O caso mostra que é possível para o corpo combater o câncer,
mesmo que isso seja incrivelmente raro.”
A questão é: como? A paciente de Irvine acredita ter sido a “mão de Deus”. Mas
cientistas estão estudando a biologia por trás da chamada “regressão
espontânea” para buscar pistas que possam fazer casos de autocura algo mais
comum.
Recuperada pela gravidez
Em tese, nosso sistema imunológico deveria perseguir e destruir células que
sofrem mutações antes que elas comecem a evoluir para um câncer. Mas às vezes
essas células conseguem passar despercebidas, reproduzindo-se até formarem um
tumor.
Até o câncer ser detectado pelos médicos, é altamente improvável que o paciente
consiga se recuperar sozinho: acredita-se que apenas um em cada 100 mil
pacientes pode se livrar da doença sem receber tratamento.
Mas entre esses raríssimos casos há algumas histórias realmente inacreditáveis.
Um hospital da Grã-Bretanha, por exemplo, recentemente tornou público o caso de
uma paciente que descobriu um tumor entre o reto e o útero pouco antes de saber
que estava grávida. A gestação correu bem e o bebê nasceu saudável. Quando ela
se encaminhava para o doloroso tratamento para o câncer, seus médicos notaram,
com muito espanto, que o tumor desapareceu misteriosamente durante a gravidez.
Nove anos depois, a mulher não apresenta nenhum sinal de recaída.
Casos semelhantes de recuperação extraordinária foram observados em muitos
tipos de câncer, inclusive em formas mais agressivas como a leucemia mieloide
aguda, que provoca o crescimento anormal dos glóbulos brancos do sangue.
“Um paciente que não receba tratamento pode morrer em poucas semanas ou até em
uma questão de dias”, conta Armin Rashidi, da Universidade Washington, em St.
Louis. Ele, no entanto, encontrou 46 casos em que essa doença regrediu sozinha.
“É possível que 99% dos oncologistas digam que isso é impossível de acontecer”,
afirma Rashidi, que escreveu um artigo sobre o assunto com o colega Stephen
Fisher.
Leia mais: Como a Evolução explica o seu cansaço
Crianças que se salvam
Por outro lado, é surpreendentemente comum ver crianças se recuperando do
neuroblastoma, um tipo de câncer infantil, oferecendo algumas das melhores
pistas sobre o que pode acarretar a regressão espontânea.
Esse tipo de câncer surge com tumores no sistema nervoso e nas glândulas. Se
ele se espalhar, pode levar ao aparecimento de nódulos na pele e pólipos no
fígado, e o inchaço do abdômen dificulta a respiração.
Trata-se de uma doença muito desgastante, mas ela pode desaparecer tão
rapidamente como surgiu, mesmo sem intervenção médica. Na realidade, para bebês
com menos de 1 ano, a regressão é tão comum que muitos médicos evitam realizar
a quimioterapia imediatamente, na esperança de que os tumores diminuam por
conta própria.
“Cuidei de três casos com metástases impressionantes, mas apenas observamos os
pacientes e eles se recuperaram”, lembra Garrett Brodeur, do Hospital Infantil
da Filadélfia.
Para evitar o sofrimento dessa espera, Brodeur está buscando entender os
mecanismos por trás do desaparecimento de um câncer. “Queremos desenvolver
agentes específicos que possam iniciar a regressão para não termos que esperar
que a natureza tome seu rumo ou que ‘Deus’ decida”, afirma o médico.
Até agora, Brodeur conseguiu boas evidências. Uma delas é de que as células em
tumores de neuroblastoma parecem ter desenvolvido a capacidade de sobreviver
sem o fator de crescimento nervoso (NFG, na sigla em inglês), o que permite que
elas se reproduzam bem em locais do corpo onde não há o NFG.
A remissão espontânea pode ser provocada por uma mudança natural nas células
tumorais, talvez envolvendo os receptores que se ligam ao NFG. Isso pode fazer
com que as células percam esse nutriente essencial e não consigam sobreviver.
Se isso for verdade, um medicamento que consiga atuar nesses receptores seria
capaz de iniciar a recuperação em outros pacientes, sem os indesejáveis efeitos
colaterais provocados por tratamentos mais tradicionais para o câncer.
O poder da infecção
Infelizmente, recuperações inesperadas de outros tipos de câncer foram menos
estudadas. Mas algumas evidências conhecidas hoje foram descobertas há mais de
100 anos por um médico americano pouco conhecido.
No século 19, William Bradley Coley se surpreendeu quando um paciente que tinha
um enorme tumor no pescoço se curou completamente quando pegou uma infecção na
pele e teve febre alta.
Coley testou o princípio em alguns outros pacientes e descobriu que, ao
infectá-los deliberadamente com bactérias, ou tratando-os com toxinas
segregadas por micróbios, tumores impossíveis de serem retirados cirurgicamente
foram destruídos.
Será que uma infecção seria uma maneira de estimular a remissão espontânea?
Análises recentes dão apoio à ideia. O estudo de Rashidi e Fisher descobriu que
90% dos pacientes que se recuperaram de leucemia tinham sofrido alguma outra
doença, como pneumonia, antes do desaparecimento do câncer.
Outros artigos mostraram que tumores sumiram depois de casos de difteria,
gonorreia, hepatite, gripe, malária, sarampo e sífilis.
Mas não são os germes sozinhos que provocam a cura: a infecção é quem provoca
uma resposta imunológica que torna o ambiente inóspito para o tumor. O aquecimento
provocado pela febre, por exemplo, pode tornar as células cancerígenas mais
vulneráveis ou até fazer com que elas “se suicidem”.
Ou talvez seja importante o fato de que quando estamos lutando contra uma
bactéria ou um vírus, nosso sangue está saturado de moléculas inflamatórias que
agem como uma “convocatória” para os macrófagos do organismo, transformando
essas células imunes em guerreiros que matam e engolem micróbios – e
potencialmente o câncer.
Ao mesmo tempo, essas células podem estimular outras do sistema imunológico a
reconhecerem as células cancerígenas, e assim atacá-las caso o câncer volte.
Contraindo a cura
Outros cientistas estão avaliando uma linha de combate mais radical. Uma das
abordagens é deliberadamente contaminar um paciente de câncer com uma doença
tropical.
A técnica, desenvolvida pela start-up americana PrimeVax, tem duas etapas:
inicialmente, retira-se uma amostra do tumor e coleta-se células dentríticas do
sangue do paciente. Essas células ajudam a coordenar a resposta do sistema
imunológico a uma ameaça e, ao serem expostas ao tumor em laboratório, elas
podem ser programadas para reconhecer as células cancerígenas.
Na segunda etapa, o paciente é contaminado com o vírus da dengue, antes de
receber as novas células dendríticas programadas.
Sob supervisão médica, o paciente acaba desenvolvendo uma febre alta e libera
moléculas inflamatórias – colocando o resto do sistema imunológico em alerta
vermelho.
O tumor passa a ser o alvo principal de um ataque ostensivo das células
imunológicas, lideradas pelas células dendríticas. “A febre da dengue derruba e
reagrupa o sistema imunológico, fazendo ele assumir com toda a força seu papel
de matar células cancerígenas”, explica Burce Lyday, da PrimeVax.
A ideia de infectar pacientes vulneráveis com uma doença tropical pode parecer
loucura, mas os cientistas argumentam que a dengue, curiosamente, mata menos
adultos do que a gripe comum.
E, uma vez que a febre passe, as células programadas vão se manter alertas para
o caso de o tumor reincidir. “O câncer é um alvo em movimento. Muitas terapias
atacam de apenas uma frente”, afirma Lyday.
O cientista espera realizar os primeiros testes com pacientes de melanoma até o
fim deste ano.
É claro que todo cuidado é pouco. Como lembra o irlandês Irvine, “a remissão
espontânea é uma pequena peça em um quebra-cabeças muito complicado”. Mas se
esse tipo de tratamento der certo, as implicações são extraordinárias.
BBC
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